Crônica 8 -
Para além das muralhas do Brejo das Almas
A ficha 99 abria as portas para
um mundo maravilhoso. De repente, não ocupava mais a cadeira. Andava por
florestas com sacis e cucas, falava com a boneca, ou andava dentro de uma
barca de poesia com animais de todas as espécies. Lá vinha eu, eu tava aqui,
tava acolá, de mãos dadas com os livros.
Era a procissão diária. Devolver
um livro e receber, em troca outro, com o qual, às vezes, mesmo que,
advertidamente, deixava rolar comigo na cama ou acompanhava-me nas refeições.
Era minha forma de desobedecer? É, podia ser. Sempre tive uma “veinha” meio
rebelde... “De leve” também. Não me importava. O realmente importante era saber
o tão esperado final da história.
Penso – agora – quão penoso deve
ser para nós, rodeados de letras e palavras escritas, na verdade, bombardeados,
ler um texto literário, ainda que “de leve”. Quantas vezes o whasapp ou
facebook e sua explosão de imagens foram/são mais atrativos do que um texto
imaginativo? Sinto-me, atualmente com desejos de quarta-série, quando, que, para
ler, deveriam os livros vir abarrotados de figuras. Neste tempo, não sabia quem
era Machado. Sabia quem era Monteiro e sua trupe! Bailarinava com Cecília
Meireles no bater do Tic Tac do relógio... Cantava com Vinícius de Morais.
Tinha pena do Burrinho Pedrês. Ao fim de tantas aventuras, a glória: a ficha da
biblioteca estava quase completa! Acreditem. Naquela época, encher a ficha
primeiro era um tipo de diversão para alimentar o espírito competitivo.
Anne foi uma das primeiras
culpadas pelo desmoronamento desse mundo colorido e ilustrado no papel. Anne e seu diário.
Seu triste diário.
Ao final da quarta série,
formamo-nos. Este era o marco de adeus à escola, à professora única de todas as
matérias, aos murinhos pintados de marrom e bege. Era preciso mudar de escola.
Era preciso deixar o Eliseu e estudar no Tiburtino. Seguir era preciso, e este
caminho era sem volta. No outro ano, estudaria na 5ª série A.
O marco livresco para mim, nesta
fase, foi a troca dos livros com ilustrações para os livros sem ilustrações. As
leituras leves de, no máaaaaaaaaaaaaximo 60 páginas, foram para mais de 100!!! Acreditem. Naquela época, eu folheava o livro e via chatas letras, letras,
letras e palavras, palavras e letras. Bocejo no final.
Quem amava ler, desgraçou-se em
lamentações. Cadê as figuras? Cadê?
Um dos primeiros livros que li
foi o diário de Anne Frank. A resenha, no verso do livro, chamou-me a atenção.
Baseava-se em fatos reais (isso sempre prendeu/prende minha atenção) e era
sobre um campo de concentração (o que seria isso?). Hummm. Coçadinha de cabeça.
De repente, não estava mais em
Francisco Sá, Minas Gerais, Brasil. Estava num porão/sótão, com Anne. Paredes
cinzas, em algum lugar sombrio e frio, em um dos domínios da Alemanha, na
Europa da Segunda Guerra Mundial. Cruzei todo o oceano atlântico e os anos, sem
me mover do lugar.
Neste ponto, as figuras davam espaço
a um processo de escrita chamado descrição. Processo que detalha aquilo que o
leitor precisa ver e sentir. As muletas que tanto me carregaram deixaram-se ali
de existir. Os livros sem figuras abriam às portas da minha própria imaginação.
Não fui de ler Machado. Fiz isso
na Faculdade. Lia Agatha Christie, Jô Soares e por aí vai. Leituras julgadas
assim como o Harry Potter de hoje. Os cânones, cânones vieram mais tarde. Bem
mais tarde. Às portas da faculdade. Vieram no momento que tinham que vir.
O mundo somente de letras nos
permite uma leitura mais codificada do mundo. São segredos mais bem guardados.
Muitas vezes, exigem borbulhas calorosas de nosso cérebro a tentar entendê-las.
A inteligência sempre está perto disso. Permitir-se à conversa de esquina,
entre vizinhas, do Whatsapp, e ao glamour da vida alheia no facebook não nos
exige muito. Por outro lado, um livro sem figuras? É de arrepiar...